Enquanto o Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual, segue como uma grande preocupação em todo o mundo, os últimos registros sobre a situação sanitária brasileira revelam um segundo fenômeno: o aumento de infecções respiratórias entre crianças de 0 a 9 anos causadas por outros tipos de vírus.
Nos mais recentes boletins InfoGripe, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), é possível notar um crescimento de internações relacionadas a quadros provocados pelo vírus sincicial respiratório, pelo bocavírus, pelo rinovírus e pelo parainfluenza dos tipos 3 e 4, especialmente entre crianças.
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Esses agentes afetam o sistema respiratório e causam aqueles sintomas clássicos de resfriado, como nariz entupido, tosse, espirros e febre.
De acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa elevação está relacionada às recentes flexibilizações nas medidas de contenção da pandemia e ao retorno às aulas em todo o país.
Eles também apontam que há maneiras de minimizar o risco de novos casos dessas doenças com a adoção de medidas simples, como melhorar a circulação de ar em ambientes fechados e não mandar à escola crianças que apresentam os sinais característicos dessas enfermidades.
O pesquisador em saúde pública Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe na FioCruz, considera esse crescimento de casos entre crianças “bem impressionante”.
“Nos últimos dois meses, começamos a observar em crianças o surgimento de quadros relacionados a outros vírus que não tinham dado as caras desde 2020, como o bocavírus e o parainfluenza 3 e 4”, conta.
“E isso se soma a uma elevação das infecções provocadas pelo vírus sincicial respiratório e pelo rinovírus, que já vinha desde o final do ano passado”, completa.
O infectologista Francisco Ivanildo de Oliveira Junior, gerente de qualidade assistencial do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo, também notou esse aumento das queixas no dia a dia do consultório.
“Desde o final de agosto e o início de setembro, percebemos uma maior frequência das infecções respiratórias entre o público infantil. E chama a nossa atenção o fato de que a maioria delas não é por covid-19”, diz.
Vale destacar que grande parte dos quadros costuma ser leve e se resolve após alguns dias, mas há uma minoria de pacientes muito jovens ou portadores de doenças cardíacas e pulmonares que desenvolve incômodos mais graves, que exigem internação em UTI (unidade de terapia intensiva) e podem até matar.
De acordo com materiais divulgados pela FioCruz, cerca de 10 a 15% das crianças menores de dois anos infectadas com o vírus sincicial respiratório precisam ficar internadas.
Um efeito colateral da reabertura
Gomes destaca que o repique das doenças respiratórias em crianças se concentra, por ora, na região Centro-Sul do país.
“O Rio Grande do Sul teve um surto muito forte de vírus sincicial respiratório, e vemos números crescentes em São Paulo, Distrito Federal e alguns outros Estados”, relata.
No Boletim InfoGripe, que compila e tabula as notificações de internações por Síndrome Aguda Respiratória Grave (SRAG) no Brasil, é possível ver que, entre as hospitalizações de indivíduos de 0 a 9 anos, o Sars-CoV-2 foi ultrapassado pelo vírus sincicial respiratório e, mais recentemente, também perdeu terreno para os outros agentes infecciosos.
Gomes ressalta que não é possível comparar o aumento atual com as notificações colhidas nos anos anteriores à pandemia.
“Os números atuais são expressivos, mas é complicado fazer esse paralelo com o passado, pois antes da covid-19 não havia essa mesma mobilização para que todas as notificações de SRAG fossem incluídas no sistema de vigilância”, justifica.
Na visão dos especialistas, esse aumento pode ser explicado pelo relaxamento das medidas de contenção da pandemia e pela reabertura das escolas.
“Embora o ensino presencial tenha sido retomado em alguns lugares a partir do fim de 2020, a volta às aulas ocorreu de forma mais intensa a partir de agosto de 2021”, aponta Oliveira Junior.
“Ou seja: as crianças passaram a se reunir com mais frequência, não apenas nas escolas, mas também em reuniões sociais e familiares”, raciocina.
E, como se sabe, o contato mais próximo facilita a transmissão desses agentes que atingem o sistema respiratório.
O médico Marco Aurélio Sáfadi, presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, lembra que há um contingente de crianças com menos de 2 anos que estavam praticamente isoladas desde que nasceram.
“Em meus 30 anos de pediatria, eu nunca tinha passado por um período com tão pouca atividade do vírus sincicial respiratório como em 2020”, aponta o especialista, que também é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
“Ou seja, há um grupo de crianças que não teve contato nenhum com esses vírus respiratórios e, portanto, são mais suscetíveis agora”, completa.
Falta de preparo?
Por mais que a volta às aulas fosse necessária, Gomes acredita que as escolas poderiam ter se estruturado melhor para diminuir o risco de transmissão entre alunos, professores e funcionários.
“Esse aumento de doenças respiratórias no público infantil era algo completamente esperado. E nós tivemos mais de um ano para nos preparar e melhorar os ambientes de ensino”, lamenta.
“No fim das contas, os protocolos adotados são muito falhos e, muitas vezes, se limitam a aferir a temperatura na entrada e a fornecer álcool em gel, que são medidas pouco efetivas quando falamos de vírus respiratórios”, critica.
O especialista da FioCruz vê uma baixa preocupação com a qualidade das máscaras usadas e com a ventilação nas salas de aula, que são estratégias bem mais importantes no contexto atual.
“Já ouvi relatos de algumas escolas que não permitem que o ventilador seja ligado nesses ambientes. E nós sabemos que manter portas e janelas abertas e fazer o ar circular por esses espaços diminui e muito o risco de infecção”, informa Gomes.
O que fazer se meu filho está com sintomas?
Os vírus respiratórios costumam estar relacionados a duas complicações principais: a pneumonia ou a bronquiolite, que provocam uma espécie de inflamação em algumas estruturas pulmonares.
“Essas formas graves costumam ocorrer com mais frequência em crianças pequenas, com menos de dois anos, ou aquelas que apresentam doenças congênitas que afetam a resposta imune. Portadores de doenças cardíacas e pulmonares também são mais suscetíveis”, explica Oliveira Junior.
O médico orienta que os pais fiquem atentos aos sintomas típicos de resfriado e busquem a orientação de um profissional da saúde.
“Nem todo quadro respiratório necessita de pronto-socorro. Na maioria das vezes, vale marcar uma consulta com o pediatra ou fazer um atendimento à distância, se possível”, diz.
“Agora, se a criança tem febre alta ou persistente por mais de 48 horas, está com dificuldades para respirar ou não quer se alimentar, é importante buscar o pronto-socorro”, avalia.
“Recém-nascidos e bebês muito pequenos, que estão nas primeiras fases da amamentação, também precisam ser acompanhados de perto”, acrescenta Sáfadi.
Nos quadros mais graves, o paciente precisa ficar alguns dias no hospital para receber oxigênio, garantir uma boa hidratação, fazer fisioterapia respiratória e retirar o excesso de muco das vias aéreas.
Um ‘pacto social’
Existem também algumas estratégias que ajudam a minimizar o risco de infecções respiratórias no público infantil.
Além das ações mais básicas, que envolvem o cuidado com a ventilação do ambiente e uso de máscaras em lugares fechados, os especialistas destacam uma medida que deveria se tornar mais habitual no Brasil: não mandar à escola crianças que apresentam sintomas típicos de resfriado ou de gripe.
Essa atitude evitaria a transmissão de vírus para os demais colegas de sala.
“Me parece que naturalizamos o fato de que esses outros vírus respiratórios também podem estar por trás de casos graves, internações e óbitos”, destaca Gomes.
“Isolar os casos de suspeita de problemas respiratórios teria um enorme impacto coletivo e diminuiria as cadeias de transmissão dos vírus”, completa.
Oliveira Júnior entende que é preciso criar um “pacto social” para que hábitos do tipo passem a fazer parte de nossa cultura.
“Essa é uma daquelas orientações que são fáceis de falar e difíceis de colocar em prática”, considera.
“Para que essa medida funcione, precisamos de mudanças em toda a sociedade. Manter as crianças com resfriado em casa depende, por exemplo, (de) que as empresas liberem os pais e as mães para trabalharem em home office nesse período”, afirma o infectologista.
Já Sáfadi lembra que a maior exposição das crianças às atividades escolares e sociais a partir de agora demanda um cuidado não apenas com os vírus respiratórios, mas com uma série de outras doenças infecciosas.
“É importante atualizar a carteira de vacinação dos filhos, ainda mais com esse retorno ao ‘normal’ que vivemos nas últimas semanas”, aponta.
“Vemos com muita preocupação as quedas nas taxas de cobertura vacinal contra o sarampo, a poliomielite, a difteria, a pneumonia, a coqueluche e várias outras enfermidades comuns entre as crianças”, finaliza o médico.